segunda-feira, 23 de abril de 2007

O Santo Massacre







por Leonardo Correa


Em sua recente visita à Terra Santa em celebração pela passagem do segundo Milênio do Cristianismo, o papa João Paulo II pediu perdão aos judeus e muçulmanos pela Igreja Católica ter, há 900 anos atrás, instigado a Cruzada que terminou por produzir um terrível massacre da população civil judaica e árabe de Jerusalém, por parte dos cavaleiros cristãos. Saiba como se deu esse assalto à Cidade Santa.




"Insondáveis são os desígnios do Senhor!" Assim meditavam os cavaleiros cruzados na sua marcha pela Palestina em junho de 1099. Desde que saíram de Alepo, na Síria, em direção à Cidade Santa, só encontravam pelo caminho, areia, pedras, e chão árido, esturrado. O Jordão foi-lhes outra decepção. Cavaleiros viajados como Godofredo, Tancredo e Boemondo, que conheciam os rios europeus, o Pó e o Danúbio, largos, fluentes, desiludiram-se ao verem a modéstia daquelas lodosas águas beatas, e, no entanto, fora nelas, dizia a Santa Escritura, que João Batista ungira Nosso Senhor Jesus Cristo. Na expedição vinham ainda, sob o comando dos barões, uns dez mil homens, tendo a fome e a sede como companheiras. Seria mesmo ali, intrigavam-se, que se dera a Encarnação?



Confirmava, porém, ser aquele um lugar milagroso, a existência de inúmeras capelinhas erguidas pelos peregrinos que, em devoção, homenageavam ali antiquíssimas relíquias. Numa delas, pasmem, encontraram até uma lasca da Arca de Noé! Mais espantados ficaram os cruzados quando lhes mostraram onde forjaram os cravos que prenderam o Salvador na cruz! Cada uma daquelas pedras em seu caminho, asseguravam a eles, testemunhara uma profecia, cada entranha na rocha acolhera um Malaquias ou um Isaias. Não duvidavam mais, a Palestina era o berçário dos iluminados de Deus, aquela era sim a Terra Santa.

Avistando Jerusalém




Finalmente, ao avistarem Jerusalém no dia 7 de julho de 1099, um êxtase místico os acometeu. De joelhos, o povo, os soldados e os barões, prostaram-se na frente dos seus muros. Lá dentro, alarmado com a chegada daqueles belicosos, o governador egípcio reforçou as defesas. Cidade escolada em assaltos e sítios, as muralhas de Jerusalém eram impressionantes, mas desta vez não deteriam a força da fé dos famintos de Deus. Pedro Eremita, líder da chusma cristã, sugeriu repetir o exemplo de Josué em Jericó. Que os cruzados derrubassem-nas a toques de corneta, enquanto evocavam o céu em piedosa procissão.

Descalços, em trajes de penitentes, com rosários e ladainhas, os cristãos fizeram várias voltas ao redor da cidade sob as vistas zombeteiras dos guardas muçulmanos que, do alto das seteiras, assistiam espantados aquela inútil rezaria. Nenhuma pedra rolou das muralhas, nem um tijolo gemeu.
O assalto à cidade santa

Deram-se conta então, os comandantes surpresos, que lhes faltava madeira para o assédio. Conseguiram-na vinda do litoral, graças a presteza de alguns marinheiros genoveses. Construíram então aríetes e torres com elas. Rezando e praguejando arrastaram-nas para as beiradas dos muros. O assalto final a Jerusalém deu-se no dia 15 de julho de 1099. Pretende-se que foi Boemondo o primeiro cristão a pôr os pés no alto do fortim. A guarda muçulmana assustada recuou. Debandou. Conforme a soldadesca cristã embarafustava-se nas vielas que cercava a Mesquita de Omar e a Sinagoga, foram tomados por um furor homicida.

Os pacíficos habitantes da cidade, judeus e muçulmanos, representavam para eles o demônio, a impureza, a profanação dos lugares santos. Não os perdoaram. Os árabes que encontraram no pátio da Grande Mesquita foram exterminados à espadaços e à lançadas. Aos judeus coube um destino pior. Encerrados no Templo de Salomão, queimaram-nos vivos. Pouparam apenas a vida do governador egípcio Iftikhar ad-Dawla, e dos seus guardas, a quem Raymond de Saint-Gilles, um cavaleiro de cabelos brancos, que "desdenhava ser cruel com os fracos", jurara proteção. Até hoje os historiadores embaraçam-se com o número das vítimas que os cristão fizeram em Jerusalém. Oscilam entre 6 mil a 40 mil mortos!

E nem se pôde responsabilizar os chefes pela matança. Os barões bem que tentaram conter a soldadesca, mas ele escapou-lhes ao controle. Fanatizado, o cristão comum, considerando-se um vingador celestial, virara um animal feroz a quem um estripamento, uma carótida esguichando, ou a degola dos gentios, parecia a justa revanche dos tormentos de Cristo. Quem respirasse era morto. Mataram inclusive os animais domésticos.
Uns anos antes da catástrofe, o poeta árabe al-Maari, que morrera em 1057, separara os homens em dois grupos: "os que têm cérebro mas não têm religião/ E aqueles que têm religião mas não têm cérebro". O Grande Massacre, ocorrido há 900 passados, além de ter azedado para sempre a relação entre os cristãos e os muçulmanos, permaneceu como um desses estúpidos altares sacrificiais erguidos pelos homens que têm religião mas não têm cérebro.

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